Pedagogia mistagógica de março 2023

13 de Fevereiro de 2023


Pedagogia mistagógica da Quaresma e CF2023

A Quaresma é um tempo especial proposto pela Igreja para avaliar a vida cristã no relacionamento com Deus, na vida pessoal e na sociedade. A pergunta de fundo é simples: como está sendo meu relacionamento com Deus, comigo mesmo e com as pessoas com quem convivo?

 

Depois de concluir a primeira parte do Tempo Comum, iniciamos o Tempo Pascal com a preparação própria deste tempo, que acontece com a Quaresma. Para celebrar e viver a Quaresma, as propostas celebrativas do SAL – Serviço de Animação Litúrgica sugerem dois movimentos.

 

O primeiro é aquele marcado pela conversão de quem vai em busca de Deus caminhando na estrada do discipulado. E, o segundo movimento, aquele que vai em busca de Deus, caminhando na estrada da fraternidade, que é uma consequência lógica do discipulado. Compreende-se que a conversão sempre tem duas mãos: uma que direciona para Deus e a outra que direciona para a fraternidade. Só que a conversão para Deus acontece no caminho da fraternidade.

 

A espiritualidade da Quaresma, que conduz e favorece a conversão, não se limita a realizar pequenos sacrifícios ou penitências com a duração de 40 dias. A Quaresma é portadora de uma espiritualidade que intensifica a busca da conversão pela mudança de mentalidade (Rm 12,2). A conversão se caracteriza pela mudança de mentalidade; deixar a mentalidade do mundo e adotar a mentalidade, o modo de pensar divino.

 

Nos Domingos do Ano A, que celebramos em 2023, a iluminação central da conversão encontra-se no compromisso batismal. A Quaresma do Ano A é o grande modelo de pedagogia mistagógica que coloca o celebrante em confronto com seu compromisso batismal. Assim, o celebrante inicia a Quaresma colocando-se na sua condição de criatura: lembra-te que és pó e em pó te tornarás” (4f de Cinzas). Depois, a Liturgia chama atenção para dois aspectos da vida cristã: aquele de ser tentado (1DTQ-A) e aquele de participar da glória divina, no Tabor (2DTQ-A). Nestes dois Domingos iniciais, a Liturgia propõe um ensinamento de Jesus de como viver o Batismo: resistindo às tentações e não se isolar no Tabor, mas descer para levar a luz da glória divina até a planície.

 

Depois, nos outros três Domingos quaresmais, a Liturgia coloca os celebrantes diante do compromisso batismal apresentando quatro símbolos do Batismo: a água como símbolo do dom do Espírito Santo (3DTQ-A com o Evangelho da samaritana), o dom da luz divina (vela acesa que recebemos no Batismo), no 4DTQ-A com o Evangelho da cura do cego nato e, no último Domingo da Quaresma, o símbolo do óleo, na 1ª leitura, e o símbolo da veste branca, no 5DTQ-A, com o Evangelho do ressuscitamento de Lázaro; o Batismo tira as ataduras de morte e reveste a veste branca da vida divina para viver como ressuscitado. Isto do ponto de vista da pedagogia mistagógica das celebrações quaresmais do Ano A.

 

Campanha da Fraternidade 2023 nesta Quaresma 
Nós, do SAL – Serviço de Animação Litúrgica – consideramos importante relacionar o tema batismal com a Campanha da Fraternidade 2023, com o tema: “Fraternidade e fome”. O lema da Campanha da Fraternidade é: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).

 

Quem acolhe o Batismo torna-se fraterno e praticante das obras de misericórdia. Dar de comer a quem tem fome é uma obra de misericórdia, inspirada em Mt 35,25: “eu estive com fome e me destes de comer”. Ao contrário do que dizem alguns grupos, posicionando-se contra o tema da Campanha da Fraternidade, a fome é um tema Bíblico, um tema que preocupa Deus e, por isso, é um tema religioso.  

 

A fome nos Domingos da Quaresma do Ano A 
A fome aparece na 4ª feira de Cinzas no tema do jejum: “quando jejuares não fiqueis com o rosto triste”. Jejuar, entre outros sentidos e finalidades, é também fazer experiência pessoal de fome e sentir-se solidário com quem tem fome. Neste sentido, a penitência consiste em deixar de comer para dar de comer a quem tem fome. Aquilo que não comemos torna-se esmola para quem está com fome, como lemos em Is 58,7, quando o profeta pergunta: (o jejum) “não será repartir tua comida com quem tem fome?” O jejum não é concluído com o deixar de comer, mas com a partilha da comida com quem tem fome. Aqui, o primeiro tema da Campanha da Fraternidade: não fazer jejum por prescrição, mas aprender do jejum a dar de comer a quem tem fome, como diz o lema da Campanha da Fraternidade: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).

 

O tema da fome aparece também no 1DTQ-A como consequência do jejum. Jesus jejuou 40 dias e sente fome. Na fraqueza física e psicológica que a fome causa no faminto, Jesus é tentado a transformar pedras em pão. É a tentação de uma Igreja milagreira, que transforme pedras em pão para matar a fome de milhões de pessoas. Este não é o projeto divino; este é um projeto tentador que tem em vista evitar a fraternidade, evitar a partilha do pão em vista de vender pão e lucrar. O Evangelho do 1DTQ-A conclui dizendo que os anjos se aproximaram de Jesus e o serviram. A pessoa do faminto nos coloca em condição de sermos “anjos” para deles nos aproximar e servi-los com o pão partilhado. Evitar a tentação de uma Igreja milagreira para se tornar Igreja da partilha do pão. “Somos a Igreja do pão, do pão repartido, do abraço e da paz!” – como canta Pe. Zezinho.

 

Na cena da Transfiguração do Senhor, proposta no 2DTQ-A, nós ouvimos três vozes: a voz do Pai, a voz de Jesus e a voz humana, na boca de Pedro para sugerir o distanciamento da vida vivida nas periferias. A proposta de Pedro, de ficar na montanha da Transfiguração, era ótima. Mas, essa não é a religião ensinada por Jesus; é preciso descer de todas as montanhas que nos distanciam dos flagelos sociais, como é o flagelo da fome. A voz de Pedro continua falando e propondo o mesmo distanciamento das periferias sociais, como proposta de religião alienada de quem vive em igrejas lotadas de louvores, mas fraternalmente cega. É uma religião descomprometida com a fraternidade. Jesus não aceita e orienta descer a montanha e iluminar a vida dos famintos com a glória da transfiguração pela partilha do pão. Também isto encontra fundamento Bíblico em Is 58,10: “se entregares ao faminto o que mais gostarias de comer, matando a fome de um humilhado, então a tua luz brilhará nas trevas e o tua escuridão será igual ao meio dia”. Dar de comer é um modo de iluminar a vida com a luz divina da transfiguração.

 

No 3DTQ-A, a Liturgia relata as consequências psicológicas e espirituais de quem tem sede e fome. A sede o povo, que suscita reclamações contra Moisés (1L) e reclamações contra Deus (SR). A falta de água e de alimento revolta o povo, causa tristeza, pessimismo, críticas e depressão com desejo de morte. Povo faminto é povo deprimido, capaz de se sujeitar a tudo, até mesmo voltar a ser escravo no Egito (1L). É em tais consequências da fome e da sede que se inspira a proposta comunitária da celebração penitencial deste ano de 2023 do SAL. Na proposta penitencial, a 1ª leitura é do Gn 47,13-21: a fome faz com que o povo venda a própria vida e se torne escravo do faraó. Será que um batizado, um cristão e uma cristã brasileiros, vivendo num dos países que mais produz alimento no mundo, pode compactuar com essa realidade de pessoas vendendo suas vidas para sobreviver?

 

Os clamores de 33 milhões de brasileiros pedindo comida chegam aos ouvidos da Igreja que, com a orientação dos nossos bispos, pedem para fraternalmente partilhar o pão com os famintos. É desse modo que, como cristãos e cristãs, tornamos visível “o amor de Deus derramado em nossos corações” (2L do 3DTQ-A); amor que é ação do Espírito Santo. É impossível ter o coração repleto do amor de Deus e não ser fraterno com quem tem fome.

 

O 3DTQ-A apresenta outra cena provocada pela cansaço da sede e da fome: Jesus no poço de Sicar, senta-se com sede e com fome (E). Os discípulos vão comprar alimento para a fome e Jesus pede água a uma samaritana. Na cena do encontro de Jesus com a samaritana, no poço de Sicar, Jesus é o sedento e é o faminto. Ele não tem nenhum recurso para tirar a água do poço fundo, lembra a samaritana. A única coisa que Jesus tem é um pedido: “dá-me de beber!” Os nossos pobres, sedentos e famintos, são carentes de água, de pão e de recursos. Na boca deles, entra pouca água e pouco alimento, mas é uma boca repleta de um pedido: dai-nos de beber, dai-nos de comer. E, Jesus ensina como proceder diante desse pedido: “dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16).

 

No 4DTQ-A temos um fato interessante: o Evangelho da cura do cego nato, realizada por Jesus, dedica pouco espaço à cura em si e longo espaço às discussões que giram em torno do bem que Jesus fez ao cego recuperando sua vida. Discutem o que? Se Jesus deveria ou não fazer o bem num dia de sábado. Se Jesus deveria ou não fazer o bem servindo-se da religião. Se podemos ou não fazer uma campanha da fraternidade para dar de comer a quem tem fome. Tradicionalismos religiosos impedem até mesmo de fazer o bem: o bem de recuperar a vista e o bem de dar de comer a quem tem fome.

 

Discussões e tradicionalismos religiosos, que impedem de fazer campanha em favor da fraternidade de que passa fome. São cegos incapazes de ver os famintos. Pior que isso, são guias cegos que vão às redes sociais para cegar ainda mais pessoas com suas críticas e tentando desmontar o que é genuinamente e religiosamente cristão: a fraternidade de dar de comer a quem tem fome. É como diz Jesus: cegos guiando outros cegos (Mt 15,14).

 

A cura do cego, realizada por Jesus, dentro das devidas e necessárias proporções, também é proposta pela Igreja, nesta Campanha da Fraternidade 2023: ajudar a abrir os olhos para ver os irmãos e irmãs famintos.

 

No 5DTQ-A, que narra o ressuscitamento de Lázaro, nós nos deparamos com uma profecia de São João Paulo II, repetida por Bento XVI e pelo Papa Francisco: existe uma "cultura de morte" no mundo inteiro, que é promovida por ideologias, políticas e, até mesmo, por conceitos religiosos.

 

O ressuscitamento de Lázaro oferece um símbolo muito eloquente para compreender a responsabilidade diante da “cultura de morte”. Diante de tentativas de impedimento, porque Lázaro cheirava mal — como cheira mal tantos pobres sepultados em túmulos famélicos — o projeto divino de Jesus é diferente: ele ressuscitará, tirai a pedra, Lázaro vem para fora.

 

Três movimentos para combater a “cultura de morte”: fé na ressurreição, tirar todo tipo de pedra (barreiras) que impede a vida vir para fora: preconceitos, medos, políticas interesseiras; Lázaro vem para fora: irmão e irmã famintos: vêm para fora da fome. Tirar a pedra é sinônimo de ação, de atividade (que às vezes exige força de quem retira pedras pesadas) em favor de libertar a vida de agressões de morte. A fome é uma agressão de morte, uma agressão mortal, que pode matar.

 

Outro detalhe, que chama atenção no 5DTQ-A. Marta manda um recado para Jesus: “Senhor, aquele que amas está doente”. É o recado que também a Igreja ouve todos os dias de milhões de irmãos e irmãs que vivem no sofrimento, em diferentes formas de doenças; no contexto da CF2023, de milhões de pessoas vivem doentes de fome aqui no Brasil. Os famintos são irmãos e irmãs amados que vivem doentes e que precisam ser ajudados. Como Jesus, a Igreja, que somos todos nós, fraternalmente caminha ao encontro da agressividade da fome para eliminá-la e devolver aos famintos a dignidade da vida.

 

Conclusão
As propostas do SAL – Serviço de Animação Litúrgica – ajudam sua comunidade a preparar a Quaresma iluminando-se na Campanha da Fraternidade 2023 com o mesmo olhar de Jesus diante do povo faminto: “dai-lhes vós mesmos de comer!”

Serginho Valle 
Fevereiro de 202